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Memórias de Andarilhos. Boa sorte Diego!

Cheguei perto da hora do meio-dia com o calor dos trópicos a beliscar-me a pele e a fazer-me esquecer o Outono da minha latitude, ainda deslumbrada pela descoberta de uma terra de gente boa, tão diferente do desenho borrado das notícias que cá nos chegam. Cheguei depois de uma hora de mar, de um azul deserto que guardei e que ainda hoje tenho só para mim mesmo passados tantos anos. Mais uma longa caminhada e pronto, duas horas para avistar meia dúzia de cabanas, com telhados tristes de folha de palmeira, ou cento e vinte minutos pela promessa de um almoço divinal, lá onde Judas perdeu as botas e parece o fim do mundo.

As redes para descansar e as bebida frescas previram na perfeição a chegada dos forasteiros, que de vez em quando aparecem lá na linha do horizonte, deixam os apetecidos reais e voltam para casa cheios de histórias para contar, que vão depois tirando dos sacos como sempre fizeram os viajantes do mundo, desde a noite dos tempos - esta é uma dessas histórias, tirada do saco de um grupo de quatro andarilhos de que tenho a sorte de fazer parte.

A imensidão de dunas a toda a volta da única casa de tijolo da aldeia deixava adivinhar duas coisas – a antevisão do que eu vinha à procura, os Lençóis Maranhenses também pomposamente chamados Grande Deserto dos Trópicos, e a vida agrilhoada de quem vive a muitas muitas horas de distância seja de um médico ou de uma padaria.

E o almoço foi indiscutivelmente delicioso, farto, servido pela dona da casa e por uma rapariga, jovem dos seus 20 e poucos anos, cor de especiaria e dentes branquíssimos, sorriso radiante, simpatia inesgotável, eficiência, olhos doces daqueles que convidam à conversa. E como os olhos convidaram, os sentidos obedeceram, fala puxa fala, e o estupor do almoço perdeu todo o sabor quando andando somente meia dúzia de passos para o lado, a fortuna se transformou em lição de vida. A Jesus vivia numa daquelas cabanas que avistando-se ao longe não se querem por perto, juntamente com o marido, os três filhos, e a miséria. Desolação é palavra suave, descrever o casebre é impossível. E no meio da areia, em frente à casa, sob o sol tropical, má sorte ter tido uma paralisia cerebral em bebé, má sorte não falar antes emitir sons profundos e perturbantes, má sorte não andar mas arrastar-se sobre duas perninhas mortas, estava o Diego. O Diego a mostrar que entendia e sorvia tudo à sua volta. O Diego a pedir alguma coisa que só a mãe entendeu porque as mães entendem tudo, o Diego a pedir bolachas, a mãe a dizer que não havia bolachas nem havia nada, com o mesmo sorriso com que minutos atrás nos tinha servido fartura à descrição. E com os mesmos olhos doces cheios de esperança porque semanas antes um italiano com muitas facilidades fixou o coração naquele cenário desolado e lhe prometeu vir buscá-los para tratar o menino e enganar para sempre a certeza de uma vida sem futuro. O Diego a querer ser feliz.

E eu, ali, naquele fim de mundo, a milhares de quilómetros de onde me encontro agora, onde deixei tudo o que podia e tinha comigo naquele dia - dinheiro, medicamentos e muito muito pesar – vivi em poucos minutos com uma mulher cor de canela uma história de esperança, com um menino pobre uma história de coragem, e com um homem rico uma história de amor.

Já passaram muitos anos e não sei como acabaram estas histórias, mas continuo teimosamente a acreditar na beleza dos gestos dos Homens. Também já andei muitas mais milhas, tive muitas mais coisas boas e coisas más, horas tristes e horas alegres, condição sine qua non a todos os vira mundos como nós. Mas em nenhum outro momento, em viagem alguma, voltei a sentir a vontade tão forte de ter uma varinha de condão para ser fada madrinha como naquele dia, lá longe, em terras do Ceará, num país tropical cheio de encantos mil.

marta


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